domingo, dezembro 19, 2010

Gelada emoção

O poeta desconhecido bem dizia: ‘Quando de artérias desentupidas jorra a vermelhidão absurda, / Só se pode rezar, / O caminho que ela segue/ Não é mais o rumo com a presumida autoria de Deus. / Ela simplesmente jorra/ De acordo com as batidas do coração/ Que morre.’

Ainda que a lâmina fosse pouco afiada, tzáz, e um horizontal corte na jugular. Horror, tragédia? Calma, era só um manequim, um aluno desinteressado demonstrando qualquer coisa numa aula de Cirurgia Geral da faculdade.

O pedaço de matéria plástica que imitava os sofrimentos e dores humanos não abriu os olhos ou gemeu de dor. Nada de vida ali. No máximo, houve um levíssimo tremor, esse vindo da mão que manuseava sem muito cuidado o bisturi. Tesoura Metzenbaum e feito um furo profundo no peito, sem alcançar coração algum.

Um primitivo instinto, vindo das profundezas do estômago do quase doutor, confundiu a mistura de espuma e látex cor da pele com carne e disse: Alimente-se. Horas e horas de jejum que se cessariam até, quase de modo canibal, com um boneco desanimado, futuramente um paciente. Até onde todo esse cansaço o levaria? Plantões e plantões em tantas noites (e pó e pó em tantas outras horas) que parecia plausível e adequada uma discussão dessas com o próprio cérebro.

O poeta, agora dentro da cabeça dele, prosseguia em seus devaneios: ‘Continue, avance, ganhe experiência, que no futuro esse diploma e essa magreza te valerão alguma coisa, seja um emprego que você não quer, seja uma aliança larga demais no dedo, seja uma vida vazia, seja uma pessoa vazia. Que valha menos do que plástico e sofra ainda mais caladamente que esse boneco’.