segunda-feira, maio 24, 2010

Derradeiros lenços de bolinha

“Tanta tristeza e tanta pena de mim e dos que obrigatoriamente me cercam que me imobilizo para apreciar a longínqua e suave beleza do que se passa ao redor, sugando com um último suspiro o que poderia me salvar; no entanto, me deixa ainda mais sozinha, isolada na minha estrela, estrela que na verdade eu sempre me considero quando assim estou. Até logo.”

Este bilhete, escrito rapidamente numa letra cheia de curvas quase medievais, ela deixou sobre a cômoda, propositalmente; que alguém um dia o encontrasse e o interpretasse melhor do que haviam feito.

Acostumara-se a pegar emprestado longos vestidos de sua irmã quando saía para dançar, e às vezes a cauda prendia num pé ou outro, mas agora permanecia amordaçada pelas próprias emoções a todo segundo, de saia curta e blusa pouco comportada, do jeito que enfim queria. Seus lábios secos não formaram um sorriso, apertaram-se para que continuassem sufocados lá dentro seus impulsos para desistir ou talvez para pensar melhor com a ajuda de dois ou três copos. Passou por eles uma última leve camada de batom, analisou-se no espelho e contou os passos até o corredor pela última vez. Pisou com cuidado nos tapetes da sala, como havia sido acostumada, para que não deixasse marcas nos caríssimos persas importados.

A fechadura do portão fez seu cleck despedaçado, melodia que havia embalado toda a sua vida. Ela ajustou mais o lenço brancos de bolinhas pretas no pescoço enquanto andava, tão apertado quanto pudesse. Suas vistas se limitavam ao chão e aos pés dos passantes; ainda que esta fosse a última vez, sobrava o embaraço de encarar desconhecidos olho no olho.

A inquietação, agora fragmentada como o cristal dos vasos que quebrara em seu quarto, ficava nas sombras dos becos pelos quais ela passava. Pegou um ônibus que levava ao outro lado da cidade e que como sempre rangia muito; ela já sentia-se mais leve, ainda com o espírito um pouco desencontrado, ansioso para encontrar a metade que havia estado longe.

Minutos longos passaram e poucos belos e antigos bairros como o antigo dela passaram. Enfim saltou do ônibus, desajeitada e próxima ao destino dado como certo. Caminhava tranquilamente ainda que tremelicasse por dentro, com o coração literalmente do tamanho da cabeça de um alfinete.

A grama brilhava ao anoitecer. Cores fortes brigavam no céu inalcançável enquanto o sol majestoso descia no horizonte e uma manta escura salpicada de estrelas era estendida. Os olhos dela faiscavam e escorriam por seu rosto lentamente.

Tão vazia por dentro que foi atingida em todo o seu ser por um frio tímido. Encontrava-se numa velha estação de ônibus, já parcialmente desativada. Não havia ninguém lá. Sentou-se nos degraus sujos sem se importar com suas roupas e esperou seu passe para a glamurosa liberdade, sua tática infalível e cheia de mentiras, seu sossego contado nos dedos, chegar.

E, numa moto, ele veio, minutos depois.

Com seu papo leve, regado ao ligeiro cheiro de álcool, ele a envolveu em um beijo só e em alguns suspiros, ajustou o capacete em sua cabeça com curtos cabelos pretíssimos e deu a partida. Ela agarrou sua cintura e sentiu-se novamente em casa, sendo uma só, sendo só para ele. Deixou pra trás o que havia seguido e sido, por tanto tempo, insuficiente.

Um comentário:

  1. A M E I. Merece muito mais do que só um comentário. Incrível.

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