domingo, setembro 27, 2009

-Mais um pedaço de massa cinzenta, por favor.

Agitando a senha amarela e amassada na mão, a cliente, número 456, uma aposentada ainda muito digna, chamou um atendente. Mas o serviço de entrega de massas cinzentas havia piorado muito, naquele balcão localizado nos fundos de uma padaria suspeita nos confins do Centro de São Paulo e Pedro (devido as constantes brigas de Paulo e Pedro, os apóstolos em pessoa, o nome deste último havia sido adicionado ao nome da Capital. O que não diminuíra em nada o número de arranca-rabos: ainda duelavam para ver se o nome do time de futebol também mudava.).
O rapaizinho de avental, mal saído da última ressaca, examinou a olhos fundos a autenticidade da senha daquela senhora, para o desgosto dela. Para que teria comprado uma senha falsa, se ainda era um dos poucos cidadãos honestos naquela Cidade? Ainda que as autoridades não concordassem, todos os esquemas que ela supostamente havia armado eram limpos como as porcelanas que pendurava nas paredes da cozinha.
A canseira que emanava do mal encarado boy quando este pediu licença para buscar o pedido na cozinha levou-a à distração. Peguntava-se, se era necessário, realmente, mais pedaços de massa cinzenta (não tão caros assim, ainda bem), após ter os estoques, bem guardados em vasos Made in Chinindia, jogados na privada pelo seu adorado netinho (havia puxado a família da nora, jamais a de seu próprio filho). Ainda que a mãe do menino anunciasse que preferia entregar-lhe a massa cinzenta do garoto, fresquinha, do que permitir a sogra fosse atrás de massa cinzenta nova, mas ainda assim velha, não saía de sua cabeça a imagem da mulher de seu adorado filho, em plena festa própria de casamento, vomitando no seu vestido bordado, vestido que não tirava mais do armário. Inconfiável moça.
Com um plaf nojento, o rapaz colocou sobre o balcão um pedaço ainda quentinho de massa cinzenta. Vestindo luvas que trouxera de casa (recusava sempre as que os funcionários dali lhe entregavam, não confiava em suas esterelizações prometidas), examinou com dedos finos cada parte da massa. Cutucou para examinar a consistência, enquanto o rapaz cutucava discretamente o nariz.
-Vou levar.
Embalada em jornal (que àquela época, destinava-se só àquilo), a massa cinzenta, pesava exatos 456 gramas. Niguém notou a coincidência.
A senhora arrumou espaço em sua bolsa de plástico (tão em moda), para o embrulho.
Tomou o ônibus e seguiu na viagem de volta, levando massa cinzenta na bolsa, não na cabeça, como tantos outros passageiros.

terça-feira, setembro 22, 2009

Privação ao maior bem

O direito de viver, que envolve questões como o aborto e o homicídio, engloba também a pena de morte. Utilizada em certos países como ultima saída a determinados criminosos, pode acontecer por diversos meios, entre eles a cadeira elétrica, o enforcamento e injeções letais. Não é o único indicador para o bom funcionamento do sistema penitenciário de cada país; por outro lado, chama a atenção às ideias de pessoas ao redor do mundo sobre a ética envolvida no direito de começar ou acabar com a vida.
Tratada por algumas nações como o definitivo método de combate ao crime, infelizmente não obteve resultados tão satisfatórios assim. Continuam ocorrendo crimes extremamente violentos, entre assassinatos, seqüestros e estupros.
O ‘medo’ que a própria privação ao bem de viver livremente, a prisão, deveria causar, não acontece, principalmente no Brasil, onde a Justiça muitas vezes acaba por não funcionar corretamente.
Chegamos aqui a um ponto crítico, no qual o mau tratamento dado aos presos em cadeias superlotadas não é o suficiente para os ressocializar e leva a constantes rebeliões e fugas. Seria a hora de instituir a pena de morte sob o pretexto de arranjar o espaço nas cadeias e evitar reincidências de crimes violentos?

sábado, setembro 12, 2009

Aceita?

Bebi devagar o meu chá; eu não gostava de chá, principalmente daquele, feito com folhas verdes e cogumelos vermelhos batidos com leite de porco, entretanto, seria uma indesculpável falta de bons modos deixá–lo esfriando na xícara azul. Um engraçadíssimo bule transparente a toda hora flutuava da mesinha de centro e despejava um pouquinho mais em minha xícara, mesmo quando eu lhe dizia educadamente que já estava satisfeitíssima. Apesar de não possuir uma face para expressar suas emoções, comportava–se como um perfeitíssimo ser humano.

A senhora sentada à minha frente tomava o chá a toda velocidade, sem parecer se importar com a quentura ou com o gosto amarguíssimo. Trajava uma saia e uma blusa de tecidos roxos e laranjas belíssimos. Apenas enquanto o bule a servia ela conversava falava comigo, sempre um pouco distraída:

–Há tanto tempo você não vem aqui... Certamente algumas semanas.

Expliquei–lhe que não era sempre, infelizmente, que eu podia visitá–la. Seus olhos encararam fundo em mim; o fazia para lembrar de minha avó.

–Lembro–me agora de uma vez em que sua avó estava aqui, para um chá, – bebeu o conteúdo fumegante num só gole – tranqüilíssimo como esse, justamente quando uma nave enorme estacionou bem ali! Corremos pra lá – ela apontou uma imensidão escura – e, imagine, encontramos três senhores esquisitíssimos, que se moviam lentamente, piores do que lesmas!...

Eu gostava de ouvir suas histórias, principalmente aquelas que incluíam meus parentes. Não me importava de ter que ir tão longe, naquele frio, para visitá–la. Tomei um golinho do chá e, disfarçando o gosto repugnante preso em minha língua, pedi que ela continuasse:

–Por vez ou outra passa algo voando aqui por perto, naquela direção, – ela apontou uma coisinha brilhante e vermelha – mas sempre costumam mais ir pra lá – tomou o chá e, catando o bule no ar, direcionou–o para um outro pontinho mais aceso e um pouco maior no lado oposto.

–Nada nunca bateu aqui? Algo que estava voando perto... e caiu?

O bule nunca se esvaziava. Felizmente, às vezes ficava quietinho, sem voar, ouvindo comigo as histórias. Eu ficava aliviada, porque assim podia acabar logo com o chá restante em minha xícara. Afaguei sua tampa delicadamente, agradecida pelo sossego.

–Ora, claro! Em algumas ocasiões, tenho até que me esconder por alguns dias, pois muitas coisas ficam caindo, coisas pesadas, cinzas e com inscrições azuis, vermelhas, pretas, amarelas e brancas.

– A senhora nunca quis ir embora?

Ela colocou com uma das mãos a xícara e o pires na mesinha (eles boiaram no ar por alguns segundo até ela lançar-lhes um olhar malvado), suspirou fundo:

–Jamais existiu um dia em minha vida em que eu não quisesse voltar. Você, sendo neta de sua avó, deveria, a partir de hoje, saber de um pequenino fato, acho eu: – aproximou–se:

–Tenho medo da solidão.

Fiquei boquiaberta. Ela continuou:

–Tenho pavor do silêncio, de não ter ninguém. De conviver apenas com a própria sombra e só poder ouvir a própria voz. De não poder compartilhar nada com ninguém, de não ter ninguém para me receber, muito menos convidados para entreter de vez em quando. De viver sem ninguém para me dizer bom dia ou boa noite, deixando assim a minha agonia mais lenta ainda... Sinto–me inabitada, pois não há quem possa morar no meu coração ou ocupar meus pensamentos. É, vocês seres humanos me fazem falta.

Ela sentia–se tristíssima, como eu nunca havia imaginado antes. Foi um pequeno choque, admito, encontrar tamanha senhora tão abalada. O bule suspirou, deixando escapar fumaça, sabendo da dor de sua dona. O ambiente ficou mais frio e as estrelas pareceram piscar loucamente (ainda que eu tenha dado pouca atenção a isso). Eu confortei–a segurando sua mão macia e redondíssima que ela deixara sobre vagando no ar. Sorriu para mim um sorriso grato (pude ver seus olhos molhadíssimos), e puxou a mão para enxugar uma lágrima.

–Nunca me acostumei e nunca conseguirei. Mas, é preciso. É necessário. É indispensável. É até mesmo óbvio. Eu mereço e nunca disse que não ficaria aqui. Não se preocupe: todos têm que pagar, às vezes por sua insolência e audácia, ocorrida em qualquer época da vida.

Meu relógio assoviou. Eu precisava voltar para casa.

Se não fosse tão ingênua à época, poderia ter notado sua expressão mudar em alguns milímetros.

–Desculpe, tenho que ir. – mordi o lábio, infeliz por ter de deixá–la sozinha novamente. Pobre velhinha...

–Vá, querida. Não se preocupe. Só deixe–me antes mostrar–lhe uma coisinha.

Ela fechou meus olhos assoprando-os. Senti-a segurar-me pelos ombros, levando–me para um outro lado. Andamos pelas terras esburacadas. Soprando-me novamente (senti alguma sonolência e uma leve sensação de poder voar), eu os abri.

E ali estava a Terra, quieta, azul, marrom, verde e branca. Grandíssima, era maior do que o que eu imaginava. Distingui a América, onde ainda era dia, da Europa e da África, onde já estava noite. Jamais havia imaginado vê-la assim; pensava como um pequeno ponto no espaço. Nunca entendi sua grandeza ou as fórmulas que explicavam o seu tamanho.

Eu queria abraçar aquela generosa senhora para expressar minha felicidade e me despedir, mas ao me virar, ela não estava mais lá. Não havia ninguém por perto.

Só as sombras se aproximavam, querendo me devorar.

Quando tomei fôlego, já não enxergava mais nada, apenas um pouquinho da Terra, longe demais. Eu experimentava como era ser parte do escuro, tomada pelo medo.

A cada segundo eu estava cada vez menos viva.

Era o meu fim. Eu estava do lado escuro da lua.

Solitária.
_____________________________________
Ainda que na escuridão, meu coração brilhava.

sábado, setembro 05, 2009

Pra você, amiga verdadeira pra caralh*!

Faltavam-lhes sinceridades; no plural? Mais do que no plural, pois acontecimentos onde sobrou falsidade eram tão comuns que as duas confundiam a si mesmas, roendo por dentro uma vergonha de tanta hipocrisia atirada de graça uma contra a outra.
Motivos exorbitavam o possível, de um lado e do outro. Continham fatos tão reais que o que foi projetado para ser a viagem de concretização de uma amizade transformou-se num show de palhaços atirando tomates podres numa platéia estupefata que jamais esperaria tantos erros bobos virando uma enorme coluna, que por fim desabava lentamente cortando o antes sólido laço que as unia.
É, com exemplos vagos assim, elas fugiam do remorso que puxava seus pés à noite, acordando-as e fazendo-as olhar uma nos olhos da outra, para logo desviar o olhar, já que não valia a pena enxergar o óbvio mais do que uma vez.
A completa arrogância lhes trazia a sensação de segurança que lhes encobrira. E logo, o arrependimento deu lugar a outras coisas igualmente importantes (compras, compras, compras).
Pra que se preocupar? Nenhuma delas queria voltar.

(Baseado em um delírio em dupla, já consertado. DESCULPA!)