terça-feira, fevereiro 17, 2009

2050? Ou Hoje?

Perdoem o texto de quatro páginas publicado no post passado. Achei-o irresistível.

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Despertou com a cabeça no lugar dos pés, o travesseiro macio longe da cabeça. Os lençóis estavam embolados no chão. Devia ter tido um pesadelo, mas não se lembrava.
Era muito cedo ainda.
Pelas duas paredes envidraçadas de seu quarto, no último andar do prédio, o 34º, ela viu a vista mais linda que existia: o sol manso e laranja nascendo no leste, ao mesmo tempo iluminando intensamente o que recebia sua luz e escurecendo demais o que ficava nas sombras; uma beleza indigna daquela data. As nuvens tinham formas abstratas, eram coloridas em tons quentes. Seringueiras fortes de quase oitenta metros de altura cercavam o prédio e suas folhas balançavam acompanhando uma brisa delicada, misturando-se como se fossem uma só. Muito além, era possível ver campos verdes e cintilantes, intocados, apesar de muito bem cuidados. Um fino riacho serpenteava perto da linha do horizonte. A profundidade das cores doía os olhos, mas não era possível parar de apreciar.
“Como puderam prever um fim de semana com neve?”
Nenhum passarinho piava.
Julia agora estava de pé, encostada com dificuldade no vidro blindado, de pé sobre as perninhas finas e brancas: tocava com os dedos ásperos a proteção fria da onde nunca teria permissão de sair. O enorme quarto, gelado, limpo e perturbador, era preenchido apenas por uma cama e uma estante com alguns livros, ao lado, uma porta que não tinha maçaneta.
Nenhuma borboleta batia as asas.
Olhou para seu reflexo quase imperceptível, o retrato de uma velha com idade de garota: uma lágrima escorreu pela bochecha espinhenta. Chorar, sem estar realmente triste, sem ter certeza da tristeza, para quê? Nunca correria naqueles campos nem escalaria aquelas árvores. Não nadaria nos rios nem respiraria o ar de fora. Era a realidade. Era a verdade. Era a certeza. Era imutável. Em todos os dias de sua vida.
Nenhuma formiga trabalhava seu trabalho de formiga.
Mas naquela data específica, ano a ano, tudo piorava um pouco para ela: a graça do mundo ficava maior, parecia acenar, sorrir e convidá-la carinhosamente para que desfrutasse-a com prazer. Tudo se tornava mais especial, mais claro, mais vivo! Tudo parecia voltar a ser o que era antes.

Em Cinco de Janeiro de 2038, uma terça-feira, às 19h34min, uma bomba atômica superior a todas as que jamais foram lançadas era preparada para ser lançada em algum país (qual ninguém se lembra) que estava em uma violenta guerra com outro (também esquecido), porém explodiu na base no meio do que era chamado o Oceano Pacífico. Um erro humano, uma falha nos cálculos, sabotagem? Nada nunca seria provado ou discutido.
Não havia sobrado nenhum ser humano ou animal que não estava dentro daquele prédio.
O que Julia sabia com clareza? “Que lá fora,”, como diziam os adultos, “não existe nada a não ser a natureza da qual nós nunca deveríamos ter evoluído e que nós nunca deveríamos ter transformado. Nosso poder incontrolável nos fez e nos desfez. Mas agora já é tarde para começar de novo. Nada mais poderá existir fora daqui. Somos o fim de nós mesmos e também o começo do que um dia fomos.”
Eles eram, sim, talvez dramáticos. Mas as palavras certas, melancólicas e verdadeiras continuavam sendo passadas de pessoa a pessoa, e estavam escritas na porta de cada quarto em letras infantis. Ao lembrá-las com atenção, Julia foi atingida por fortes memórias esquecidas, dos tempos em que ainda tinha sua mãe e seu pai, seu irmão mais velho, sua casinha no campo, sua saúde intacta, a liberdade...
-EU AINDA VOU SAIR DAQUI! EU VOU!
Batia com os punhos cerrados no vidro. Doía, mas o seu coração aprisionado doía mais. Ela gritava, chorava, chutava, soluçava; uma confusão de emoções vergonhosa e que estivera presa dentro dela desde que se conhecia por gente libertou-se quando ela vagou em seus pensamentos e deixou de lado o controle da razão. Estava sozinha? Não, tinha os outros sobreviventes. Mas continuava solitária, sem alguém que partilhasse do mesmo desejo e da mesma saudade da vida.

Quando se aquietou, uma mulher entrou em seu quarto, reclamando sobre a barulheira. Julia mal prestou atenção: mentiu que tinha caído, o que era comum. A mulher saiu, sem mais perguntas. Ninguém sabia como se importar com os outros, como era amar. Teria sido assim a vida antes?
Julia tinha um plano e estava decidida: sairia (como nunca ninguém tinha saído) daquele prédio. Acreditou em si mesma e em Deus; tinha fé, tinha coragem, tinha que viver, ou morrer tentando.
Ela resmungava enquanto descia a escada em caracol. Parava de degrau em degrau, lenta como uma tartaruga, pois não agüentava a descida: não tinha força física naquele corpo deixado de lado durante tanto tempo. Respirava ofegantemente, agarrando-se ao corrimão e à esperança.
Enfim térreo. Tinha demorado muito para chegar lá; com certeza os melhores tons do sol já deviam ter desaparecido do céu, teria sobrado apenas a luz forte, nenhuma sombra. Agora chegara a hora.
Passou-lhe pela cabeça o pessimista sentimento de que poderia simplesmente não conseguir. Alguém a impediria, a aprisionaria novamente, ‘para a sua própria segurança’, tentaria afogar seu sonho com discursos? Ou, por incrível que pareça, poderia ela se descobrir incapaz de sair, impossibilitada de encarar o desconhecido, medrosa?
Só saberia se tentasse.
Caminhou normalmente pelo corredor abandonado, inspecionando o lugar com os olhos cheios de lágrimas, tremendo. A porta que dava para fora não tinha nada de mais: era apenas velha e marrom, a madeira decorada com folhas e frutos gastos. A chave antiga, enferrujada, sempre estava na maçaneta: era só girá-la e sair; tão fácil que parecia ser algo usual! Não havia e não haveria nada para atrapalhá-la.
Ela suspirou, correu, de olhos fechados destrancou a porta e saiu.

Desabou no campo. Julia estava exausta. Ao sair do prédio, com medo de evaporar pela radiação ainda existente, tinha notado como era diferente existir fora do prédio. Experimentava cada parte de seu corpo, sentia-se plena, viva como nunca e dona de si. Conheceu novas sensações, novos cheiros, novas cores, novos pensamentos, novos sons, uma nova Julia. Não havia mais nenhum problema de saúde nela e nenhum medo, nenhuma dor.
Ela sorria pela própria liberdade e por amar de novo a vida. Riu: como o céu parecia infinito dali, tão azul!
De repente, uma minhoca saiu da terra e esticou-se ao lado dela, preguiçosa e nojenta.
Julia chorou de alegria.
Havia esperança.

segunda-feira, fevereiro 09, 2009

There's No Place Like London

E, novamente, ele havia a procurado. Stella sentia–se usada e insegura, sem saber ao certo em quem acreditar. “Acho que está ficando frio”, pensou, enquanto olhava pela janela e pegava–se roendo as unhas. Nunca mais tinha roído–as desde que começara a sair com aquele rapaz. Mas a falta de chão mudava suas razões e a levava a fazer coisas insensatas.

Andou pelo apartamento bagunçado procurando um casaco e verificando mais algumas vezes as trancas da porta da frente. Sentou no chão, pois ela ainda não tinha tido tempo para comprar um sofá: o apartamento, como a maioria das coisas em sua vida, continuava pela metade. Ela ligou a televisão do quarto que também era sala para distrair–se, após ajeitar as antenas do aparelho para conseguir um sinal melhor, mas a programação boba de uma quarta–feira à tarde não a interessava.

O telefone tocou. Estridente, alto, deu–lhe um susto.

–Alô!!! Alô!!! – Stella gritou ao atender. Percebeu-se nervosa, com a respiração ofegante e os batimentos cardíacos acelerados.

–Stella?

A voz conhecida lhe trouxe de volta um passado esquecido. Sua tensão fora aliviada, pelo menos um pouco, pois ela se sentiu em seu antigo lar.

–Stella, está aí?

–Sim, sim!!! – ela apertava o telefone com força. Uma tonelada de emoções embaralhava seu coração. O melhor amigo de Stella, William, estava do outro lado da linha e do outro lado do oceano, mas ainda assim ela podia senti-lo ao seu lado! Certamente as notícias tinham corrido rápido. Mas quem... ?

–Como está? – sua voz parecia preocupada.

–Bem – ela respondeu, apenas por educação.

–Fará alguma coisa hoje à noite?

Ela não compreendeu a pergunta, e não se sentiu bem pensando que ele queria brincar com ela numa hora dessas.

Olhou para as pernas num jeans velho: aquele era o jeans que ele mais gostava; teria lhe espantado o azar? Enrolou o fio do fone nos dedos e mordeu o lábio inferior.
–Para quê quer saber?

–Estou em Londres, Stella!

Aquelas palavras rápidas a acordaram do pesadelo. Com William por perto, não haveria problema. Pois ele era o seu amuleto mágico, sua fonte de sorte; desde que ele se mudara para Nova Iorque, nada tinha dado certo para Stella.

Marcaram em uma lanchonete aonde os dois iam quando seus pais ainda eram amigos. Ela chegou cedo e arranjou uma mesa nos fundos, num canto romântico. Observava os casais de todas as idades e se perguntava se algum dia teria sua felicidade plena.

Um minuto se passou. Stella enrolava o cabelo nos dedos e se questionava: tinha ficado liso demais?, daria a parecer que ela só se preocupava com chapinha?, ele pensaria que acontecera nela uma mudança de personalidade? Ou gostaria de garotas de cabelo liso?

–Stella?

William a surpreendeu por trás; continuava lindo, mas o tempo tinha feito tão bem à sua agora amadurecida beleza... Carregava um buquê de flores cheirosas. Usava roupas despojadas, com cara de usadas. Usava um novo piercing na sobrancelha, além do no nariz.

Stella pulou de sua cadeira e o envolveu num forte abraço. Sentir de novo o cheiro da William a deixou tonta de desejo. Nesse abraço estavam escondidas várias emoções: medo, angústia, segurança, felicidade, carinho (pela parte dela, até demais). Ele a afastou para olhá–la, próxima talvez demais dos lábios dele. Stella segurou firmemente as lágrimas que a pinicavam enquanto olhava nos olhos castanhos e profundos dele: tinha demorado horas com o lápis de olho e gostado razoavelmente do resultado esfumaçado.

–Você cresceu demais – ele riu.

Ela, no alto de seus 26 anos, não tinha crescido nada desde a última vez em que o tinha visto. Ele, que completaria 21 no próximo mês, tinha crescido muito em Nova Iorque.

Os dois se sentaram e Stella disparou a falar, deixando vazar todas as dúvidas que tinha quanto a ele:

–Por que veio, sem avisar, Will? Onde está hospedado? Desde quando está aqui? Até quando ficará? Quem o chamou? Precisa de alguma coisa? Como está? Falta algum dinheiro? E seus pais? E os estudos? Como foi nesses anos? Está gostando? Conheceu gente nova? Lugares novos? Está feliz?

Ele respirou fundo e colocou sua mão sobre a dela. Aquilo causou nos dois um estranho formigamento, uma sensação de proximidade que estivera longe. Ele suspirou:

–Me ligaram. Na verdade, sua vizinha. Ela disse que não sabia de outros amigos seus e que já tinha ouvido falar de mim. – Stella encabulou–se e baixou os olhos: por que foi tão fofoqueira a ponto de contar de William para sua vizinha coreana? Ele ergueu o rosto cheio de pintas dela com os dedos macios da outra mão e procurou novamente seus olhos verdes.

–Não ache que eu também não falei de você.

Seguiu–se uma noite calma (diferente dos últimos dias que Stella tinha vivido), onde os dois conversaram, reataram a cumplicidade, beberam algum vinho e sorriram muito. Ela abria, sem perceber, seu coração endurecido pela solidão. Estranhava o calor humano e poder depositar novamente tanta confiança em alguém.

Só voltou à realidade quando ele lhe deu um abraço de despedida, em frente ao velho prédio dela. Ela agarrou a jaqueta de William e disse em sua voz mais sensual possível (o que, para ela, foi ridículo; parecia uma vagabunda loira de novela):

–Fique.

A lua brilhava sobre eles, poucos carros passavam na rua. Ele pensou longamente, olhando o céu. Por fim disse, com grande esforço:

–Fico. Mas não durmo com você, Stella. – pausou por alguns segundos, estudando a reação dela, e então prosseguiu – Nada pessoal.

Isso a atingiu. Ela não tinha admitido para si mesma, mas sempre esteve apaixonada por ele. Ela tentou negar, mas era aquilo que queria desde que descobrira que ele estava em Londres: ele, e só ele. E agora, William a recusava, o pior de tudo, educadamente.

Subindo as escadas, ela pensava em como podia despertar nele uma paixão súbita, uma vontade incontrolável. Seu arsenal de armas para conquista era fraco e tinha se mostrado pouco eficaz nos últimos dias.

Arrumou silenciosamente um colchão na sala que fazia de quarto, ao lado da cama dela, angustiada por não ter o que desejava ao menos uma vez na vida. Despiu–se no único e minúsculo banheiro: tinha colocado, por intuição, belas roupas, uma minissaia e uma blusa preta decotada, com botas de couro que a deixavam mais alta ainda; mas ele pareceu não se encantar e nem perceber direito seu corpo de mulher. Após colocar uma camisola azul, largou–se cansada em sua cama onde dois caberiam perfeitamente: dali o observava escovando os dentes na pia da cozinha, sem camisa. Não havia esperança.

A noite foi complicada: ela tardou a dormir, enquanto ele adormeceu em apenas alguns instantes. Ela sentia vontade de deitar com ele e sentir seu corpo quente e calmo, mesmo que nada acontecesse entre eles. Só de ouvir a respiração de William, já se arrepiava.

Na manhã seguinte, a primeira coisa que viu quando acordou foi o cano de uma pistola apontado para sua cabeça. Um forte homem de terno e óculos escuros segurava a arma e prendia William numa chave de braço. Seu amigo estava horrorizado e amedrontado.

“Veio enfim acertar as contas? Quer meu sangue? Ou a encomenda para sua mamãezinha?”, Stella borbulhava de raiva, queria expulsar aquele cara a gritos, tapar os olhos de William e dizer que aquilo tinha sido apenas uma ilusão... A ira lhe dava lágrimas nos olhos e fazia suas mãos cerrarem-se “Não tinha hora pior para vir?”.

–Terceira gaveta – ela disse, numa voz calma e paciente, porém pesada.

O homem tirou da gaveta, entre as roupas, uma caixa marrom. Largou William e o chutou. Sorriu um sorriso malicioso e desejou bom–dia hipocritamente. Antes de bater a porta da frente, gritou, entre os risos:

-É um prazer fazer negócio com a senhorita!

Stella aguardou silenciosamente, envergonhada. Quando ouviu os passos descendo a escada, deu um longo suspiro.

–Como?! – William tentou puxar fôlego, mas estava fora de si. Não conseguia ficar de pé sobre as próprias pernas, de modo que caía e levantava seguidamente, batendo nas paredes e móveis. – Daonde surgiu aquele cara?! Putamerda!! – passava as mãos pela cabeça. Firmou–se ao juntar os fatos em sua mente, perturbado. A olhou com força. – Então é verdade?

Ela cruzou as pernas finas, tirando o lençol que a cobria e jogando–o no chão delicadamente. Sua cara estava séria e fechada, ainda assim inocente. O olhar mirava as unhas feitas dos pés. William estava incrédulo.

Apesar do choque, ele se deu conta da imutável fragilidade de sua amiga e sentiu pena dela. Como o amigo que sempre tinha sido, esperou sua cabeça esfriar, e então se sentou na ponta da cama e a observou: seus cabelos ruivos–quase–castanhos eram longos e pareciam excessivamente desarrumados. Algo em seu rosto era sempre engraçado, mas estando com ela e sabendo de seus problemas, quase não havia motivo para rir. Ele se aproximou lentamente, testando suas reações, até estar perto o suficiente para beijar-lhe a bochecha; mas Stella foi mais rápida. Puxando um antigo revólver da fronha do travesseiro, encostou–o no peito nu de William, paralisando–o.

–Melhor colaborar, amigo... – ela lhe disse, fria como gelo, ao pé da orelha. Não parecia nervosa, mas sim decidida. – Senão... – ela pegou a mão direita dele com a sua esquerda e fez com que ele passasse o próprio indicador horizontalmente no pescoço dela; sua pele estava gelada.
O empurrou delicadamente para que pudessem se olhar nos olhos e William viu na cara dela uma angústia profunda. Apesar disso, ela manteve o contato da arma com a pele dele: não o largaria tão facilmente assim, ele achava.

Ele tinha sido alertado diversas vezes de que não era bom tentar conversar com alguém que portasse uma arma. Mas, estando sozinho com Stella, a pessoa que mais amava no mundo (teve que admitir), naquele pequeno apartamento em Londres, olhando–a tão fundo nos olhos... Não se sentiu em perigo algum.

Stella olhou–o com raiva (suas expressões eram sempre bem nítidas). Antes que pudesse começar, ela raciocinou, rapidamente:

–Não tenho o que explicar. Você já deve saber pelo menos do resumo da história. A princípio, não lhe devo esclarecimentos desnecessários. Espero que você seja inteligente o suficiente para tirar suas próprias conclusões e, claro, não contar para mais ninguém. – suspirou e refletiu, com apenas os olhos tristes:

– Não devia ter se metido nisso, William.

Ele fechou os olhos, esperando que ela atirasse. Não sentiria tanta dor assim. Achava-se então mais louco do que ela. Rezou um pouco, coisa que não fazia há anos.

–Não, não vou te matar. – ela colocou o revólver no colchão e as mãos sobre a cabeça. – Não posso e nem quero te matar agora, William. Você sabe, – ela passou os dedos pelo cabelo e o olhou com dúvidas – ... eu te amo.

William não se surpreendeu. Apenas pensou, “explicarei isso à Helen (sua então namorada) quando voltar. Ela vai entender, e, se tiver sorte, vai enfim achar o cara certo para ela. Ela sim merece isso.”.

Já estava anoitecendo quando William acordou. Ainda tinha sono, mas precisava sair antes que Stella despertasse. Vestiu–se e olhou pela última vez o rosto angelical de sua amiga, coberta apenas pelo lençol. Quis deixar um bilhete para que ela depois acreditasse que aquilo não tinha sido um sonho (porém nem ele conseguia crer com toda a certeza no que os dois tinham feito! E como tinha sido bom!), mas preferiu que ela tivesse apenas lembranças: nada que pudesse ter sua marca, seu toque. Cogitou em levar as balas do revólver, porém escolheu deixá–las ali, para qualquer situação em que Stella precisasse.

Sua felicidade era esmagada pela falta que ela lhe faria.

Confiava nela, e mais do que tudo, a amava demais. Mas foi embora, e a deixou para sempre.

quarta-feira, fevereiro 04, 2009

Árvores

Terminei, com lágrimas nos olhos, de escrever aquela pesada carta a você, no escritório iluminado e abafado. Olhei o céu por uma fresta na janela coberta com grossas cortinas: estava índigo, um tom de azul diferente, e as nuvens roxas; não havia anoitecido completamente, de modo que o sol se punha grandiosamente no oeste. Eu imaginava não encontrar nenhuma estrela no céu.

Desci as escadas em frente à porta da cozinha devagar, estudando cada degrau. Dois cãezinhos me esperavam loucamente atrás de um portão no meio da escada que os impedia de subir e entrar. Fechei-o quando passei, sentei no chão, contemplando a noite quente, o ar limpo, o vento forte batendo em meu rosto cansado; sentia-me na praia novamente, olhando o infinito e não conseguindo distinguir céu de mar. Os dois filhotes pulavam insistentemente e mordiam os botões da minha blusa. Precisavam de um banho, mas eu não me incomodava com seu cheiro. Tentei aninha-los em meu colo, mas seu crescimento absurdamente rápido não permitiu que os dois se ajeitassem confortavelmente ao mesmo tempo. Decidi andar pelo jardim.

O gramado denso e verde, que escondia milhares de insetinhos e outros animais nada agradáveis, estava bem escuro; nenhuma luz estava acesa e eu não pretendia clarear aquela noite tão agradável; pois por mais que houvesse algo que pudesse me amedrontar no meio do mato, eu não sentiria medo, afinal, não o veria!

Escalei devagar a árvore enorme que se apoiava no muro branco. Subindo um centímetro de cada vez, sem pressa, descobri como meus braços tinham ficado fortes e que agora sustentavam o peso do eu corpo sem o menor problema. Eu ainda não aparentava ter esses músculos, mas daqui para frente os exercitaria cada vez mais.

Eu esperei longos meses pela primavera; e agora que ela chegou, não sei descrever como é estar no meio da copa de uma árvore toda florida, tão cheia de folhas que não se enxerga o céu. Eu não alcançava nenhuma flor, o que só me fazia quer ir mais e mais alto.

Não percebi o quanto estava longe do chão. De repente dei de cara com um galho onde tinha amarrado uma fita colorida, indicando o lugar mais alto onde eu me atrevi a subir. Senti vontade de passá-la e amarrar algo novo num ponto mais elevado, delimitar um novo fim para a minha loucura, mas os galhos finos não suportariam meu peso de jeito nenhum. Arrisquei um olhar para baixo, e graças ao escuro quase total, não percebi o quanto estava realmente alto. Não tenho muita noção de espaço, mas acho que estava a uns seis metros do chão, mais ou menos.

Desci devagar, aproveitando o sossego, após vários minutos sentada sozinha ali em cima, e percebi com uma das melhores sensações do mundo que meus pés já conheciam o caminho: descansavam nos galhos certos, testavam sempre as reentrâncias infiéis do tronco, trocavam-se num piscar de olhos para que eu achasse apoios... Eu não sentia mais nojo da árvore, ou dos insetos que corriam por ela ou a faziam de casa, nem da fina camada verde que a cobria. Antes, eu usava grossas luvas de jardinagem, mas o que mais quero agora é senti-la.

Larguei-me no chão escuro. É, eu ainda tenho muito medo de altura, mas sei que aquela árvore não vai me deixar cair nunca. Por isso não dou ouvidos aos meus receios quando tenho em quem confiar...